As gaivotas parecem estar sempre
dentro da claridade, haja ou não sol a interrogar as estátuas; sobre aquilo que
pensam; sobre as suas histórias; sobre aquilo que vêm, sobre aquilo que ouvem,
sobre os seus sonhos. Vejo-as aproximarem-se, sempre iguais, sempre
reinventadas, sempre a soma daquilo que está escrito mais o ignorado mais um
barco de pesca mais um olhar de gato mais sabe-se lá o quê. Bonitas, não são?
Parecem crianças no seu mundo mágico, antes de as chamarem para fazer os
deveres da escola. Ei-las que chegam a estes instantes, e são tantas, terão
nomes? Sim, podem ter nomes, dados por alguém, ou por alguma ilha, ou por elas
próprias, lá sua linguagem. De onde virão? Os cientistas sabem onde nidificam,
quais as suas áreas de distribuição, as suas rotas migratórias, o número de
espécies e o número aproximado de casais de cada espécie, sabem muita coisa
sobre as gaivotas, por isso são cientistas. Mas… sobre estas gaivotas... creio
que os cientistas sabem muito pouco. Saberão por acaso de que espaços e de que
lendas estas gaivotas virão? Não me parece. Devem ser belos os espaços
respirados e desenhados por estas gaivotas; espaços anteriores a estes, e a
outros. E devem ser belas as lendas das gaivotas… tão belas que muitas estrelas
ao escutá-las - de noite, contadas por velhos sem idade e meninos magos, ao som
distante das cigarras – acreditarão que são histórias verdadeiras e isso fará
com que brilhem mais – o brilho do acreditar. Aí estão elas, cada vez mais
próximas, mais nítidas, as gaivotas, nestes instantes, solitários como um
veleiro no mar alto, um veleiro de olhos muito abertos e frontais aos murmúrios
antigos que se erguem das ondas. Deslizam quase imóveis; serena nudez; sete
partidas percorridas; unidade liberta; paz pedida por mãos em promontório;
abundante verdade em celeiros sem medida; aliança
abraço espaço. Respiro fundo,
com os pulmões e com a alma, para melhor oxigenar o pensamento em que é tecida
uma finíssima túnica que muito lentamente liberto. É uma pergunta essa
túnica, que envio para longe - talvez ela atravesse todos os descampados do
tempo, onde tudo está disperso, tudo pertence ao sussurro e é fio caído no
labirinto do esquecimento e talvez lá longe, muito longe o corpo de um outro eu
a receba e a vista junto de um livro de páginas transparentes. Agora, como
ânforas que renascem em vinho e embriagam os espaços, as gaivotas baixam –
solenes, simples, cheias de certeza nas patas já estendidas – descem sobre o
veleiro de instantes. E aí estão elas, já poisadas - depois das suas asas se
terem fechado (ah! aquela elegante evolução de movimentos, aquela perfeita
sucessão de ângulos, aquele prodígio, mais fantástico que qualquer humana
engenharia). Ei-las, sem erro, sem engano, certas, certeiras, a ocupar o seu
lugar no navio, no navio de instantes, ao lado do marinheiro. Adiante a
celebração do mar. Pausa.
Linha em branco depois do que fui
e onde habitei por alguns instantes. Linha em branco depois de palavras como
peixes a nadar no lago que nasceu no topo de um pensamento de pescoço
estendido. Saúdo-te linha em branco. Só tu sabes o que aconteceu quando me
desliguei do corpo da palavra – mas não dos seus lábios, mas não do arco da sílaba,
mas não do voo. Tens a dimensão do azul. Aqui onde estou já respiro as coisas
que me rodeiam. A minha solidão é observada por vários objetos. Estranho-me. Há
uma lucidez a prumo sobre o meu eixo. Oiço-a. Tem os gritos das gaivotas e tem
aquilo que me disseram há pouco, enquanto estávamos à proa, a viajar, a
conversar (sim, a conversar; os seus gritos transformaram-se em palavras -
responderam a muitas das minhas perguntas e eu respondi às delas), e a sentir o
mar. E isto, e muitas outras coisas, aconteceram numa linha em branco. Respiro
fundo, como uma harpa. Só os átomos do corpo escutam os sons. Tudo é viagem.
Soares Teixeira – 06-09-2014
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