quarta-feira, 12 de novembro de 2025

OBRIGADO, MARIA JOÃO PIRES - SOARES TEIXEIRA


Wolfgang Amadeus Mozart
Piano Concerto No 20 in D menor K 466
Maria João Pires, piano.
Daniel Harding, maestro dirige a Swedish Radio Symphony Orchestra



OBRIGADO, MARIA JOÃO PIRES
 
Solar
descobriu nos dedos
que o piano era universo
e nele semeou
instantes para lá do tempo
 
Mozart escutava
como mãos de luz e rio
tornavam a sua música
árvores a dançar no céu
e sorria, contente
 
O mundo sentia-se poema
e as pessoas pétalas
que se deixavam ir
em viagem de leveza
 
Em suave som de sino
disse adeus à sua dádiva
e nós dizemos:
Obrigado
Maria João Pires
 
Soares Teixeira – 10 de Novembro de 2025
(© todos os direitos reservados) 

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

NA HORA DE PÔR A MESA ÉRAMOS CINCO - JOSÉ LUÍS PEIXOTO

 



NA HORA DE PÔR A MESA, ÉRAMOS CINCO

na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

José Luís Peixoto


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A NOITE - LUÍS MIGUEL NAVA

 



A NOITE

A noite veio de dentro, começou a
surgir do interior de cada um dos objectos e a
envolvê-los no seu halo negro. Não tardou que as trevas
irradiassem das nossas próprias entranhas, quase que
assobiavam ao cruzar-nos os poros. Seriam umas duas ou três
da tarde e nós sentíamo-las crescendo a toda a
nossa volta. Qualquer que fosse a perspectiva, as
trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que, apesar de
a noite também se desprender das coisas, havia nela
algo de essencialmente humano, visceral. Como
instantes exteriores que procurassem integrar-se na trama
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da
tarde, num estertor, a emergir intermitentemente à
superfície das coisas. Foi nessa altura que a visão se
começou a fazer pelas raízes. As imagens eram sugadas a
partir do que dentro de cada objecto ainda não se
indiferenciara da luz e, após complicadíssimos processos,
imprimiam-se nos olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então
a custo a treva nasalada.


Luís Miguel Nava 
(Viseu, 29 de Setembro de 1957 - Bruxelas, 9 de Maio de 1995)




sexta-feira, 15 de agosto de 2025

TERNURA - DAVID MOURÃO FERREIRA

 




TERNURA

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

David Mourão-Ferreira





quarta-feira, 6 de agosto de 2025

HIROSHIMA 06-08-1945 - SOARES TEIXEIRA

 

HIROSHIMA

A 6 de agosto de 1945 foi lançada sobre a cidade japonesa de Hiroshima a primeira bomba nuclear da 
História. Estima-se que 70 mil pessoas tenham morrido imediatamente e cerca de 60 mil, vítimas de sequelas, nos meses seguintes.



HIROSHIMA, 06-08-1945
 
 
Átomos apocalípticos
vomitam um clarão a estrondear
 
A explosão é um cortar de gargantas
ao espaço e ao tempo
 
Olhos, portas e árvores
são arrancados com febris dedos
de ensurdecedores gritos de luz
e tudo fica carcaça
 
Hiroshima
arde até aos ossos alucinados
 
A memória contorce-se
em lancinante grito de aviso
 
 
Soares Teixeira – 06 de Agosto de 2025
(© todos os direitos reservados)



segunda-feira, 28 de julho de 2025

POEMA EM LINHA RECTA - ÁLVARO DE CAMPOS

 


POEMA EM LINHA RECTA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.



Álvaro de Campos

(heterónimo de Fernando Pessoa)

s.d.

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

  - 312.


sexta-feira, 27 de junho de 2025

A FALÉSIA - LAUREN MENDINUETA

 



A FALÉSIA
 
A casa estava ancorada
à beira da falésia
mais alta do mundo.
Durante as tempestades
o vento empurrava-a
para a garganta do mar.
O abismo habitava
junto das nossas camas,
aberto, húmido e insaciável
como a minha fome de amor,
como a minha sede de terra firme.
As noites eram longas
para a costureira insone,
a jovem mulher de costas dobradas,
cabeça cravada no tecido
e os olhos cansados
à luz de uma vela quase eterna.
Essa jovem costureira era a minha mãe,
a mesma que coseu com o seu fio de voz
o meu vestido de poeta.
 
Lauren Mendinueta



OBRIGADO, MARIA JOÃO PIRES - SOARES TEIXEIRA

Wolfgang Amadeus Mozart Piano Concerto No 20 in D menor K 466 Maria João Pires, piano. Daniel Harding, maestro dirige a Swedish Radio Symp...