I
Não foi necessário
abrir a porta para a solidão
ela já estava aberta
limitou-se a fechá-la
atrás de si
Acontecia-lhe isso
de vez em quando
há quanto tempo?
que o diga quem adivinhar
Com o olhar submerso no vazio
sem palavras
perguntou às coisas
que chão e que tecto tinham
e nenhuma resposta
sentiu-se outro
e o outro
e tantos
quantos os reflexos
da luz do sol
no vidro da janela
que o separava da rua
daquela rua apenas?
ou também da outra
que se chamava ilusão?
questionou-se
II
Quis que duas lágrimas
lhe escorressem pela face
mas isso não aconteceu
Ausência de alívio!
vertiginosa negação!
inaudível grito ensanguentado!
Nenhuma gota de água
no rosto árido e inexpressivo
apenas o nada na superfície da máscara
a minha matéria
é azeite a arder numa candeia
que não encontro
disse
insondável veemência
de odor a vazio!
aguda unanimidade do fim!
medo?
III
Pegou no casaco
como um toureiro pega na capa
assim o dizemos
vestiu o casaco
como um fugitivo
assim vimos
saiu de casa
com uma dor não física
assim lho sentimos
IV
As ruas caminhavam estranhas
dentro dele
e as pessoas também
Nos seus passos
havia uma intacta falta de identidade
uma total ausência de querer
nenhuma sede nos músculos ou nas veias
nenhuma voz nos ossos ou na carne
deixava-se ser atravessado
pelos passeios, pelas estradas
pelas paredes dos prédios, pelas esquinas
pelas montras das lojas, pelas esplanadas dos cafés
Em breve deixou aquela realidade
ou talvez seja melhor dizer
não demorou muito
para que a realidade o deixasse
e então
aquilo que passou a caminhar dentro dele
era tudo aquilo de que nada sabia
tudo aquilo de que nada se sabia
tudo aquilo que era alheio
à disputa de qualquer vento ou palavra
era aí que ele agora se intrincava
era esse o percurso da sua respiração
não se sentia sequestrado
pelo que quer que fosse
consciência ou inconsciência
indolência ou determinação
restrição ou liberdade
não sentia nada porque sentir seria ser
e ele era o não ser
Quem o visse não podia imaginar
quais as dimensões que possuíam
o espaço que o seu corpo e o seu não corpo
iam ocupando
e muito menos
o que lhe ia no interior da retina
O acaso tem algumas cortesias
e fez com que nunca ninguém
embatesse no casco daquela embarcação
de rumo apenas conhecido desse mesmo acaso
Pássaros insistiam em ser tesouros no azul
como pensava um poeta sentado num banco do jardim
e que naquele momento se sentia reflexo de uma luz distante
crianças abriam os braços em leque
tentando abraçar irmãos de luz que só elas viam
e os sorrisos das suas mães adivinhavam
havia – e há - um lago no centro desse jardim
onde irá agora acontecer
aquilo que estava guardado numa ânfora
antiga e forte
mas que o tempo tornou frágil
Não nos demoremos mais
todos nós sabemos como são os jardins
e diga-se que um peito pode ser um recipiente
de idade, capacidade e resistência variáveis
assim nós
o consideramos
e lhe chamamos ânfora
e o que aconteceu?
o que não importa explicar
por pudor? Por delicadeza? Por fraqueza?
por solidariedade?!
tanto faz
aconteceu apenas
aconteceu que ele se sentou num daqueles bancos
em frente ao lago
onde no centro havia – e há - um repuxo
e chorou
V
Quando tirou o casaco
e o pendurou nas
costas de uma cadeira
fê-lo com um peso de movimentos
que sentiu como a cauda do cansaço
Pensou no seu passeio
despojos? Ritual?
o que fosse…
pouco importava
Então olhou para o bolso do casaco
a flor!
ah! Sim! A flor que a criança lhe tinha dado
tinha-a guardado
foi buscá-la e contemplou-a
como se contemplasse um tesouro
como se se visse reflectido no gesto
delicado e espontâneo daquela infância
tão dentro de um céu imutável
Notou nele que uma porta se abria
um pouco de luz entrou
talvez algum reflexo
sorriu
e foi com esse sorriso límpido e leve
que murmurou ao tempo:
ah!...
ser criança!...
que saudade…
Soares Teixeira – 18-12-2017
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