sábado, 9 de abril de 2022

"MARIA" - SOARES TEIXEIRA

 


                  MARIA

 

                        I

 

Havia grandes e pequenos sonhos,

havia alcunhas e muitas histórias,

deste e daquele e do outro,

havia o à vontade quotidiano

com que se olhava, caminhava, falava,

e havia a casa,

com chão, tecto, paredes, portas, janelas,

e havia camas, feitas e desfeitas,

e gavetas abertas, fechadas, e entreabertas,

com talheres dentro de umas e roupa dentro de outras,

e armários com loiça e coisas úteis e inúteis,

e frascos alinhados sobre a bancada da cozinha,

e um interruptor que tinha deixado de funcionar,

e o pingo de uma torneira, e o tapete que escorregava,

e a família e os amigos que iam lá a casa,

e havia a hora do levantar, e o pequeno-almoço,

e o ir para o trabalho, e a casa para arrumar, e o fazer o jantar,

e uma chave que às vezes ninguém sabia onde estava,

e a mesa cheia com os carinhos, os poemas e as canções dos avós

que lá tinham ido a semana passada celebrar o aniversário da neta,

feliz ao mostrar o seu pequeno gato que achara na rua, abandonado,

um gato que gostava de se esconder e que ela mimava e protegia,

e a receita de uns óculos, e a roupa para lavar,

e o espelho onde ela via uma ruga que ele não via

e onde ele se barbeava como ela gostava,

e o silêncio a certas horas do dia, e a algazarra noutras,

e havia o beijo, a carícia, a confidência, o sono,

o normal fazer isto e aquilo e esquecer de fazer algo,

e havia o sorrir e perguntar: “Como foi a escola hoje?”,

e a boca radiosa a responder: “Hoje fomos plantar árvores!”,

e o amor a dizer: “És linda!”

e havia coisas que se punham e tiravam dos seus lugares

e havia rotinas e acasos, e uma jarra antiga.

e havia orgulhos partilhados e cansaços ao fim do dia

e planos para amanhã e pequenas provocações

havia…,

havia paredes a separar quartos

havia quartos dentro da casa

havia casa dentro do prédio

havia prédio na rua

havia…

 

                             II

 

Bombardeamento:

uma palavra

em que cada letra

é um imenso punhal

interminável, vertiginoso;

uma palavra

em que cada sílaba

é uma longa lâmina aguçada

a degolar o dia;

uma palavra

faminta de destruição

e morte.

Bombardeamento:

desmedidos urros e fétida saliva

sobre os instantes;

cabelos desgrenhados do terror

a estrangular o tempo;

alucinado precipício aberto

em toda a matéria;

o fim como protagonista

de tudo.

Bombardeamento:

a boca de todas as coisas

escancarada de espanto

e depois esmagada;

as formas dos objectos

arrepiadas de horror

e depois desfeitas.

Bombardeamento:

o significado do quotidiano

de braços estendidos

e depois decepados

Bombardeamento:

horror e escombros

- duas palavras

a olharem-se olhos nos olhos

e a dizerem ao mesmo tempo:

“Ainda há apenas um momento…”

e a gritarem ao mesmo tempo:

“Como foi possível?!”

Bombardeamento:

uma palavra só, a rasgar a razão

 

                             III

 

Entre o entulho

procurava-se gente

e gente era encontrada

entre pedaços, estilhaços, farrapos, pó,

e restos de gente, também,

sem nada a palpitar dentro.

Tudo eram disformes pegadas

de uma irracionalidade

vinda de outra dimensão.

Tudo existia do outro lado da atmosfera

e nenhuma frincha para ir buscar

quem ali estava mas já não existia;

era resto, apenas.

Tudo em alucinante soma de queda e rotação

pela profundidade de uma fogueira

que consumia extensas florestas de alma.

Havia quem maldissesse

a desumana crueldade

daquela assinatura de destruição.

Havia quem quisesse desaparecer

para que os seus restos completassem

o horror daqueles restos.

Havia quem furiosamente e continuamente

procurasse e chamasse

uma, e outra, e outra vez.

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Num profundo vale de cinza

já dialogava com a morte

aquela que fora tagarela, que rira,

e amara um gato

e arrumara o seu quarto,

na semana passada,

na véspera do aniversário dos seus dez anos,

e que agora era

um resto escondido entre o entulho

à espera de ser encontrado

pela desmesura de um desespero.

Um fio de sangue saído do seu corpo

e um fio de sangue saído dos seus sonhos

estenderam-se e entrançaram-se

formando um caudal de adeus

que se alongou, multiplicou e dispersou,

serpenteando pela cadavérica intimidade

da montanha de escombros,

serpenteando interrogativamente,

lentamente, ou com brusquidão,

serenamente, ou em espasmos,

serpenteando…,

inominável, inaudível,

por baixo, por cima e pelos lados

de todos os restos e de toda a ruína,

serpenteando…,

como penetrante dor assombrada,

continuamente a infiltrar-se,

a abrir caminho,

por todos os interstícios,

ininterruptamente,

até sair dos escombros,

serpenteando…,

primavera que pouco viveu,

ribeiro de regresso à nascente,

a sua mãe,

que quase asfixiava

com o pressentimento

que a assaltava,

e que a fazia pairar num eco,

que, como ela, se desvanecia…,

desvanecia…,

Insuportavelmente incandescentes

foram as palavras

que lhe furaram as entranhas

e esmagaram o crânio até ao desmaio:

- “A Maria morreu!...”

 

 

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Soares Teixeira-21-03-2022

(© TODOS OS DIREITOS RESERVADOS)

 

 

 

terça-feira, 29 de março de 2022

DIA DO PIANO 2022

 


 

DIA DO PIANO 2022

"DOZE ESTUDOS TRANSCENDENTAIS"

DE

FRANZ LISZT

AO PIANO: DANIIL TRIFONOV



domingo, 27 de março de 2022

"O VAGABUNDO DO MAR", MANUEL DA FONSECA



 "O VAGABUNDO DO MAR"

 

Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré…
Muitas vezes acontece largar o rumo tomado
da praia para onde ia…
Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?
Sei lá.
Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.
É por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.
E agora
queira, ou não queira
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.

 

Manuel da Fonseca

 

 

domingo, 13 de março de 2022

"TANTO" - SOARES TEIXEIRA


Sei que em certos momentos

não gostas

de palavras vestidas de uniforme

eu também não

E o que pode ser o uniforme

numa palavra?

A própria palavra? A forma como é dita?

E o que é dizer?

 

Sei que, como eu, em certos momentos

gostas de ser anterior às palavras;

dizer com o sentir – apenas,

e para isso usar uma linguagem

mais duradoura que qualquer palavra

por isso

este silêncio, as mãos dadas, o olhar

- e saber que tanto assim é dito

 

 

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Soares Teixeira-13-03-2022

(© todos os direitos reservados)

 

 

quarta-feira, 9 de março de 2022

"POEMA DO ALEGRE DESESPERO", ANTÓNIO GEDEÃO

 


 

POEMA DO ALEGRE DESESPERO

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
 
 
António Gedeão 


 

sábado, 5 de março de 2022

HINO DA UCRÂNIA - ORQUESTRA GULBENKIAN

 

ONTEM, 04-03-2022, A ORQUESTRA GULBENKIAN, DE PÉ, ANTES DO PROGRAMA ANUNCIADO, INTERPRETOU O HINO DA UCRÂNIA. O PÚBLICO ESCUTOU IGUALMENTE DE PÉ E APLAUDIU PROLONGADAMENTE. COMO FUNDO UMA IMENSA CORTINA PRETA EM SINAL DE LUTO QUE SE ABRIU APÓS A HOMENAGEM, REVELANDO O ESPLENDOROSO JARDIM. ESTIVE LÁ

 

 
 
 

 

terça-feira, 1 de março de 2022

"CONTEMPLAÇÃO" - SOARES TEIXEIRA

 

Olho o mar

com memórias incrustadas no olhar

 

Pergunto ao mar

e sou transportado pela pergunta

 

Olho o mar

e o tempo deixa de o ser;

escorrega-me do ombro

como a alça de um saco

e eu fico mais leve

 

Pergunto ao mar

e os lábios deixam de o ser;

fazem-se pássaros

a chamar por outros pássaros

e eu deixo-me ir

 

 

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Soares Teixeira-01-03-2022

(© todos os direitos reservados)