I
Havia grandes e pequenos sonhos,
havia alcunhas e muitas histórias,
deste e daquele e do outro,
havia o à vontade quotidiano
com que se olhava, caminhava, falava,
e havia a casa,
com chão, tecto, paredes, portas, janelas,
e havia camas, feitas e desfeitas,
e gavetas abertas, fechadas, e entreabertas,
com talheres dentro de umas e roupa dentro de outras,
e armários com loiça e coisas úteis e inúteis,
e frascos alinhados sobre a bancada da cozinha,
e um interruptor que tinha deixado de funcionar,
e o pingo de uma torneira, e o tapete que escorregava,
e a família e os amigos que iam lá a casa,
e havia a hora do levantar, e o pequeno-almoço,
e o ir para o trabalho, e a casa para arrumar, e o fazer o jantar,
e uma chave que às vezes ninguém sabia onde estava,
e a mesa cheia com os carinhos, os poemas e as canções dos avós
que lá tinham ido a semana passada celebrar o aniversário da neta,
feliz ao mostrar o seu pequeno gato que achara na rua, abandonado,
um gato que gostava de se esconder e que ela mimava e protegia,
e a receita de uns óculos, e a roupa para lavar,
e o espelho onde ela via uma ruga que ele não via
e onde ele se barbeava como ela gostava,
e o silêncio a certas horas do dia, e a algazarra noutras,
e havia o beijo, a carícia, a confidência, o sono,
o normal fazer isto e aquilo e esquecer de fazer algo,
e havia o sorrir e perguntar: “Como foi a escola hoje?”,
e a boca radiosa a responder: “Hoje fomos plantar árvores!”,
e o amor a dizer: “És linda!”
e havia coisas que se punham e tiravam dos seus lugares
e havia rotinas e acasos, e uma jarra antiga.
e havia orgulhos partilhados e cansaços ao fim do dia
e planos para amanhã e pequenas provocações
havia…,
havia paredes a separar quartos
havia quartos dentro da casa
havia casa dentro do prédio
havia prédio na rua
havia…
II
Bombardeamento:
uma palavra
em que cada letra
é um imenso punhal
interminável, vertiginoso;
uma palavra
em que cada sílaba
é uma longa lâmina aguçada
a degolar o dia;
uma palavra
faminta de destruição
e morte.
desmedidos urros e fétida saliva
sobre os instantes;
cabelos desgrenhados do terror
a estrangular o tempo;
alucinado precipício aberto
em toda a matéria;
o fim como protagonista
de tudo.
Bombardeamento:
a boca de todas as coisas
escancarada de espanto
e depois esmagada;
as formas dos objectos
arrepiadas de horror
e depois desfeitas.
Bombardeamento:
o significado do quotidiano
de braços estendidos
e depois decepados
Bombardeamento:
horror e escombros
- duas palavras
a olharem-se olhos nos olhos
e a dizerem ao mesmo tempo:
“Ainda há apenas um momento…”
e a gritarem ao mesmo tempo:
“Como foi possível?!”
Bombardeamento:
uma palavra só, a rasgar a razão
III
Entre o entulho
procurava-se gente
e gente era encontrada
entre pedaços, estilhaços, farrapos, pó,
e restos de gente, também,
sem nada a palpitar dentro.
Tudo eram disformes pegadas
de uma irracionalidade
vinda de outra dimensão.
Tudo existia do outro lado da atmosfera
e nenhuma frincha para ir buscar
quem ali estava mas já não existia;
era resto, apenas.
Tudo em alucinante soma de queda e rotação
pela profundidade de uma fogueira
que consumia extensas florestas de alma.
Havia quem maldissesse
a desumana crueldade
daquela assinatura de destruição.
Havia quem quisesse desaparecer
para que os seus restos completassem
o horror daqueles restos.
Havia quem furiosamente e continuamente
procurasse e chamasse
uma, e outra, e outra vez.
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Num profundo vale de cinza
já dialogava com a morte
aquela que fora tagarela, que rira,
e amara um gato
e arrumara o seu quarto,
na semana passada,
na véspera do aniversário dos seus dez anos,
e que agora era
um resto escondido entre o entulho
à espera de ser encontrado
pela desmesura de um desespero.
Um fio de sangue saído do seu corpo
e um fio de sangue saído dos seus sonhos
estenderam-se e entrançaram-se
formando um caudal de adeus
que se alongou, multiplicou e dispersou,
serpenteando pela cadavérica intimidade
da montanha de escombros,
serpenteando interrogativamente,
lentamente, ou com brusquidão,
serenamente, ou em espasmos,
serpenteando…,
inominável, inaudível,
por baixo, por cima e pelos lados
de todos os restos e de toda a ruína,
serpenteando…,
como penetrante dor assombrada,
continuamente a infiltrar-se,
a abrir caminho,
por todos os interstícios,
ininterruptamente,
até sair dos escombros,
serpenteando…,
primavera que pouco viveu,
ribeiro de regresso à nascente,
a sua mãe,
que quase asfixiava
com o pressentimento
que a assaltava,
e que a fazia pairar num eco,
que, como ela, se desvanecia…,
desvanecia…,
Insuportavelmente incandescentes
foram as palavras
que lhe furaram as entranhas
e esmagaram o crânio até ao desmaio:
- “A Maria morreu!...”
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Soares Teixeira-21-03-2022
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