domingo, 29 de março de 2015

"CIGARRAS" - Soares Teixeira



(Imagem: Wikipedia/Brocken Inaglory/Creative Commons)


Rola silêncio no jardim
lenta frescura na polpa do ar da noite
tudo dorme
estará abandonado a si mesmo?
sente-se uma ausência de deuses
estarão talvez reunidos em concílio
ou mesmo a descansar

no céu
uma facilidade de portas entreabertas
é fácil
com um leve movimento de dedos
abri-las de par em par
entrar
e sentir o olhar ardente
de milhões de astros
de braços estendidos para um corpo
que ascende
como trepadeira sem matéria

fácil
é fácil o céu
quando os deuses estão ausentes
nada de ventos de lanças
nada de vontades opacas
apenas umas cigarras em cada estrela
enviadas pela Terra como presentes



Soares Teixeira – 29-03-2015
(© todos os direitos reservados)

sábado, 28 de março de 2015

"MEDITAÇÃO" - Soares Teixeira





Às vezes gosto de estar
na serenidade que sinto sobrar
das coisas simples
e suavemente deixo-me renascer
na flor que entra dentro de mim
no céu que me fala sem palavras
ou muito simplesmente
no rio que corre da nascente
para o silêncio
eu

É bom este não desejar mais nada
para além da nitidez da tranquilidade
e deixar o falso cristal da realidade
onde o engano é tanto
que parece transparente aquilo que é baço
e cansa saber que afinal não se conhece
quem se julga conhecer

Por isso me sinto bem
na entrega às coisas puras
como a água e o ar
por onde às vezes gosto de caminhar
lentamente
levemente
como um princípio
sempre assim mesmo
princípio apenas
inicial
banal
e onde está intacto tudo aquilo
que fertiliza o Ser



Soares Teixeira – 28-03-2015
(© todos os direitos reservados)

terça-feira, 24 de março de 2015

"PERMANECER" (a Herberto Helder) - Soares Teixeira





Herberto foi para outra página
como acontece com toda a gente
mas permanece no Livro
poderá ter mudado de invólucro
e este ser agora
feito de pele de eternidade
essa nunca última estação
do comboio da ilusão
esse apeadeiro do estar aqui
a apontar para ali
mas permanece
sim
Herberto permanece no Livro
por onde muitos passarão
e onde poucos ficarão
Acenam-lhe pombas brancas
de linho
são as palavras que o saúdam
em gestos leves e largos
as suas palavras
as nossas palavras
que nunca o deixarão
ficar sózinho



Soares Teixeira – 24-03-2015
(© todos os direitos reservados)

segunda-feira, 23 de março de 2015

"HÁ DIAS ASSIM" - Soares Teixeira





Hoje preciso de uma palavra sincera
que me fale de pássaros
de lugares pitorescos
e do começo do amor
uma palavra honesta
mas qual?
qual? Não me ocorre nenhuma
e necessito urgentemente dessa palavra
ela que venha
que venha rápido
e repeti-la-ei por dez vezes
vem palavra amiga vem
vem!
sem qualquer insinuação entre as sílabas
sem murmúrios escondidos por detrás das letras
sem nenhuma sugestão à sua volta
estou cansado das sombras das palavras
e dos seus reflexos e da suas obesidades
e dos anéis que levam nos dedos

há dias assim
sinto as costas curvadas
sob o peso de palavras de granito húmido
com espigões nas arestas
e estranhos desenhos gravados nas suas faces
demoro-me num nada
rodo a cabeça procurando relaxar
tento ter a idade do silêncio
e fico pensar na eternidade
mas isso é ser muito velho ou não ter idade
e eu quero ter idade e não quero ser muito velho
não me apetece
hoje já envelheci o suficiente ao som de falsas claridades
seria bom ser flor ou rio
para não pensar nestas coisas tão parvas
mas tão parvamente reais
ah se eu me transformasse agora em cavalo
daria já meia dúzia de pinotes e voava para outro lugar
mas os cavalos não voam
não?
e porque não?
olha…
achei-a
achei a palavra
sou branco e relincho de gozo
conseguem ver as minhas asas?

voar voar voar voar voar voar voar voar voar voar



Soares Teixeira – 23-03-2015
(© todos os direitos reservados)